Cresce a transformação de hotéis em prédios residenciais no Brasil
A mudança do Hotel Glória em condomínio residencial é um importante exemplo para o mercado que está se adaptando ao novo padrão de comportamento dos clientes dos hotéis
Por Guilherme Lesnok
A prefeitura da cidade do Rio de Janeiro autorizou recentemente a transformação do hotel Glória em um prédio de apartamentos e escritórios. A imponente edificação em estilo neoclássico, localizada no bairro da Glória, havia sido adquirida em 2008 por R$ 80 milhões pelo Grupo EBX, do empresário Eike Batista. O objetivo era resgatar os áureos tempos do primeiro cinco estrelas do Brasil e um dos ícones da hotelaria de luxo no Brasil, mas com a falência do Grupo EBX, o prédio foi repassado como garantia ao Fundo Soberano de Abu Dhabi, o Mubadala. Mas desde 2013 o imóvel está fechado e foi adquirido recentemente pelo Fundo de Investimento Imobiliário Opportunity que fará um retrofit mantendo as características da fachada que é tombada pelo Patrimônio Histórico e a edificação completa 100 anos em 2022. O imóvel que tem vista panorâmica para a Baía de Guanabara, Marina da Glória, Pão de Açúcar e Cristo Redentor foi um sucesso de vendas e o metro quadrado no Aterro do Flamengo foi superior ao badalado bairro de Ipanema.
Isso agitou o mercado de imóveis na capital fluminense e várias outras edificações que abrigam hotéis, devem passar por essa mesma finalidade de transformação em uso residencial ou em escritórios. Alguns especialistas acreditam que isso seja uma tendência no mercado, que a pandemia da COVID-19 acelerou esse processo, mas a verdade é que nenhum investidor quer continuar perdendo dinheiro. José Ernesto Marino Neto, CEO da BSH International, comenta que: “Todo imóvel deve ter um uso no tempo e no local. O fato de um imóvel ter sido planejado para ser um hotel não o obriga a ter uso hoteleiro eternamente. Recordo-me de quando recomendei ao Grupo Coteminas que transformasse seu hotel em outro uso. Isso foi em 2002. O mercado hoteleiro de Belo Horizonte estava ruim, iria permanecer ruim e manter o uso hoteleiro não era inteligente. Afinal, seu valor pelo fluxo de caixa descontado era inferior ao valor da própria construção. Ou seja, era recomendável sua mudança de uso. Fui criticado por todo o mercado porque “eu estaria dizendo ao vice presidente da república que hotelaria não era um bom negócio”. Imóvel é um bem que deve ter uso adequado ao momento e à sua localização. A vantagem do imóvel hoteleiro é que ele pode ser convertido em hospital, salas comerciais, residencial, entre outros usos. Portanto, o que ocorre é que o momento é ruim para a hotelaria urbana. Mas se muitos alterarem o uso, vai ser bom para quem ficar porque a oferta vai reduzir, e quando a demanda retornar, as tarifas serão determinadas pela equação oferta/demanda”, assegura Marino Neto.
Caio Calfat, Consultor e Vice-presidente de assuntos turísticos imobiliários do Secovi/SP, lembra que o momento de instabilidade econômica que o Brasil enfrentou nos últimos anos também foi gatilho para essa decisão. “Isso tem acontecido no Brasil inteiro em função desse momento difícil que os hotéis estão passando desde 2015. Na verdade, foram dois momentos e o primeiro foi motivado pela diminuição econômica. O Rio de Janeiro antes da Copa do Mundo e Olimpíadas tinha 22 mil quartos de hotéis, faltavam até hotéis, mas acabou construindo com oferta final de 62 mil quartos de hotéis, ou seja, triplicou a oferta hoteleira no Rio. E como era de se esperar, sobrou imóvel no Rio. Vários hotéis já fecharam, já vinham fechando antes da pandemia, e o que agravou a situação foi a operação Lava-Jato. A Petrobras, que é o principal cliente dos hotéis do Rio, acabou saindo de cena durante alguns anos. Somado a isso, a questão da segurança piorou bastante, a questão da moral, vários políticos presos, tudo isso diminuiu a atividade econômica e também o turismo, o que fez com que os hotéis ficassem a ver navios”, comenta.
Mudança de hábitos
Osvaldo Chudnobsky, Managing Partner Horwath HTL Brasil, acredita que a transformação que está acontecendo no Brasil de hotéis sendo transformados em residências é uma consequência natural dos embates que o setor está sofrendo, basicamente com a chegada de novos competidores. “Tem uma questão de uma nova geração de cliente com novos conceitos, novos desejos, tem outra visão do apartamento, que vem com outra mentalidade. A pandemia de uma forma manifestou isso. Pensar nessa transformação não é só uma busca de rentabilidade, é uma busca de sobrevivência, de não perder o ativo. O segmento, por exemplo corporativo internacional, vai demorar muito no Brasil para voltar ao patamar. A pandemia fez mudar conceitos, os hábitos, pensar melhor antes de viajar ou não, além das dificuldades que implicam um País como o Brasil”, ressalta Chudnobsky. Para ele, mudar a atividade de uma edificação visando maior rentabilidade aos investidores não é algo simples de se fazer e exige uma série de aprovação e licenças. “O comportamento do hóspede mudou muito nessa pandemia e o mercado tem que acompanhar os novos hábitos, fazer uma nova composição e atender as demandas hoteleiras. É uma revolução que a pandemia tem trazido. Outros conceitos mais proativos. Então é uma questão não só de hotéis e cidades, estão acontecendo em vários países. O primeiro desafio é pensar se pode em termos de licença, de autorização, converter para outro, como residência. A primeira questão é essa, aí depois consegue ver o projeto. Existem cidades que a hotelaria ganhou prêmios. O segundo elemento é entender a cultura do prédio, dos elevadores, porque na medida que você consiga levar para diferentes públicos, você consegue pensar numa reformulação”, explica Chudnobsky.
Essa transformação também pode ser levada em consideração os graves impactos provocados pela pandemia da COVID-19, que chegou afetando forte o turismo nacional, acelerou o processo. “Com a pandemia, a situação se agravou. Diante desse cenário, os hotéis que estão sem condições de se manter consideram melhor sair do negócio, vender as unidades e virar condomínio para terem chances de sobreviver, frente à redução de oferta”, comenta Alfredo Lopes, Presidente do Hotéis Rio – Sindicato dos Meios de Hospedagem do Município do Rio de Janeiro. De acordo com ele, as negociações caminham de forma mais rápida com empreendimentos novos e modernos e ele explica as razões. “Naturalmente, os novos empreendimentos já vieram alinhados com as novas demandas do setor de acomodação, com instalações mais modernas, com serviços agregados, como spas e bons restaurantes, seguindo o padrão da hotelaria internacional. Os grandes hotéis cinco estrelas estão sob gestão de grandes redes, o que dá um poder de comercialização bastante diferenciado. Por isso, os empreendimentos menores que, em geral, são independentes, ficam mais propensos às nuances do mercado”, comentou Lopes.
Para manter um turismo ativo, mesmo “abrindo mão” de alguns empreendimentos, ele cita a importância da vacinação. “Para se manter aquecido, o setor de hotelaria depende de uma campanha bem estruturada do poder público, de captação de um calendário de eventos robusto para o destino Rio e ações de incentivo junto aos principais mercados emissores. Com a pandemia, tudo isso se tornou mais difícil, e a recuperação total depende da aceleração do calendário de vacinação e da retomada da economia, como um todo”, explica Lopes estimando que outros 11 empreendimentos hoteleiros na capital fluminense que antes eram destinados apenas a turistas têm potencial para se transformar em prédios mistos.
Chudnobsky destaca que essas mudanças podem impactar na oferta hoteleira atual. “A hotelaria está em transformação, um momento histórico de sua evolução, e vamos ver nas suas próximas décadas uma indústria hoteleira bastante diferente. Daqui 20 anos, hotéis que são só hotéis, será algo muito raro. Tem alguns setores de hotéis maravilhosos que vão ter que ser reformulado, porque os setores vão demorar para voltar, não vão voltar do mesmo jeito. Sem dúvida vão voltar de forma mais hibrida, com outra tecnologia. Existem hotéis urbanos, em São Paulo mesmo, voltado ao público corporativo, vão ter que ser reformulados, porque também a demanda não vai bater. Existem produtos que não são considerados tão bons, mas que tem localização competitiva, que tem condições de serem reformados mais rápidos. Então eu acho que estamos num momento de reflexão na qual a indústria vai se reinventar. Agora, essa reformulação é lenta. Se você olhar outras industrias como o Airbnb que estão anos no mercado, e não criaram algo para atrair. A indústria hoteleira, por sua natureza demora muito para direcionar”, concluiu.
Influência em São Paulo
Caio Calfat acredita que essas mudanças, especificamente no Rio de Janeiro, podem influenciar outras grandes cidades do Brasil. Na capital paulista, por exemplo, o exemplo é bem visto. “No SECOVI, nós montamos um grupo de trabalho para criar um projeto de Lei para São Paulo e fazer a mesma coisa, permitir a transformação em residências. Me preocupa muito a questão dos hotéis no centro, porque lá estão os de um dono só. Qualquer mudança de Lei, de uso, vai ter que mexer na aprovação dentro da prefeitura. Esse tipo de ação que estamos tentando fazer no SECOVI. Com isso, a gente resolve dois problemas: a diminuição de oferta. Taxa de ocupação baixa, diária baixa, hotéis sobrando… O problema que você consegue resolver, ou pelo menos amenizar, é você tirar do mercado parte da oferta hoteleira excedente, onde existam hotéis de um dono só ou grupo, já melhora a questão porque diminuiu a oferta e aumenta a diária média”, explica Calfat.
Pedro Cypriano, Sócio-diretor da HotelInvest, faz sua análise em relação aos valores desses negócios especificamente em São Paulo, onde os valores são mais altos. “Financeiramente, em bairros residenciais atrativos, o m² residencial tem um valor em curto prazo mais atrativo. Mas devemos lembrar que geralmente novos investimentos em readequação do produto também são requeridos. E sobre o valor de transação negociado com os proprietários ainda existe o fee de reestruturação e intermediação imobiliárias. É preciso fazer bem as contas para entender se o trabalho de converter vale realmente a pena. Para ativos com potencial hoteleiro incerto, parece ser um caminho mais óbvio. Para hotéis com produtos e localizações fortes, apostar na valorização do setor ainda pode ser uma boa alternativa”, diz Cypriano.
O Presidente da ABIH-SP – Associação Brasileira da Indústria de Hotéis de São Paulo, Ricardo Roman Jr, menciona uma pesquisa que a entidade que das operações hoteleiras que encerraram nos últimos anos ou estão passando por essas mudanças de atividade. “O número de hotéis que responderam à pesquisa e se declararam fechados (fora de operação no momento pesquisado) apresentou baixa neste mês de maio/21, passando para 2,83% da amostragem pesquisada. Apesar da melhora, este dado ainda aponta retração por conta das severas restrições sanitárias, mantidas no mês de maio/21. Em maio/21, os hotéis em operação mantiveram 24,52% de suas Uhs fechadas – o que fez aumentar a oferta em relação a abril/21 (31,86% Uhs fechadas). Importante considerar também que novos empreendimentos hoteleiros também surgem estado de São Paulo”, esclareceu.
Mudanças no Condo-Hotel
Condo-Hotel é o nome dado ao conceito de empreendimento imobiliário com estrutura operacional hoteleira. Apesar dos problemas que o modelo enfrenta, Calfat ainda vê esperança para o ressurgimento. “A hora que o mercado estiver pronto para voltar, atividade econômica voltar e o desempenho econômico voltar a ser satisfatório. A gente sabe que primeiro sobe ocupação e depois diária média. Em relação aos impactos da oferta hoteleira existente, vai impactar. Até porque sabemos que o efeito manada vai continuar existindo, infelizmente. Por mais que recomendemos naquele manual de melhoras práticas, antes de fazer o hotel, fazer um estudo, ocorre em menor escala o efeito boiada. Mas eu acredito que o modelo condo hotel vai ressurgir das cinzas, até porque de novo não temos financiamento para hotéis no Brasil, e é por isso que o condo hotel acaba sendo importante”, explica.
Já Roman Jr aponta o modelo como ferramenta crescente no Brasil, principalmente no turismo. “Sim, com certeza. Condo Hotel é um segmento que existe há mais de 50 anos e veio pra ficar. Cada vez mais, esse modelo é aprimorado, com novas soluções tecnológicas, para fazer a gestão administrativa e comercial. Este um modelo de negócio é o que cresce; principalmente, em destinos turísticos”, explica.
Correção no modelo atual
Marino Neto não culpa somente a pandemia para as mudanças que impactam o sistema Condo-Hotel. Alguns erros, historicamente feitos, vão ser aprimorados neste momento, aproveitando a situação que o País se encontra. “Existem investidores com bolso curto. Não admitem bancar prejuízos por mais tempo. É verdade que há propriedades que nunca deveriam ter sido edificadas para uso hoteleiro. Então é momento oportuno para corrigir o plano de negócio”, diz. “Obviamente que a conversão de equipamentos hoteleiros para outros usos irá auxiliar os investidores que permanecerem na posição. Mas como disse antes, é uma decisão individual sobre quem consegue bancar prejuízos e olhar mais longe”, completa.
Apesar desse momento para mudanças, Cypriano acredita vê a necessidade de um modelo economicamente viável. “Processos de conversão nunca são tão simples, especialmente quando há mudança no modelo de negócio. Logo, a alternativa de transformação de hotéis em residências só faz sentido quando as perspectivas econômicas do novo modelo são mais atrativas. Até o início de 2020, alguns hotéis já tinham potencial econômico limitado. Com a pandemia, a atratividade de outros modelos, como o residencial, ganhou mais visibilidade e tem sido estudada em diferentes mercados”, explica.
Na transformação de uma edificação hoteleira para residencial ou de escritórios o impacto arquitetônico é grande e Chudnobsky explica: Os principais desafios para transformar um hotel a residência permanentes, de hotel a hotel com residências permanentes, residências de curto e médio prazo e hotel em hotel com espaços de trabalho são, em principal destaque, a questão cultural de cada espaço. “Se vai transformar um hotel completo para só hotel ou só residência, aí tem que ver as questões culturais, cozinhas, os tipos de desafios. A questão mais difícil de responder é o acesso público, esse problema não tem de hotel puro para residencial puro. Primeiro desafio é saber se tem mercado, se há espaço para residência no curto prazo, existe demanda? Existe algumas localizações que não tem demanda. Antes precisam ver o desafio do mercado. Mas de qualquer forma, se o tamanho do apartamento permitir, tem que incluir cozinha, escritório, área para trabalho, se o apartamento não é grande, vai ter que juntar dois apartamentos em um. Geralmente não é uma obra criteriosa e cara. Em último ponto, o hotel quando passa ser um espaço de trabalho, é uma coisa mais fácil e mais barata. Geralmente o produto misto, que leva público que vai trabalhar, mas vai consumir alimentos e bebidas. Vamos ver também se nesse prédio vai existir famílias morando com cachorros, gatos, que vão chegar com compras… Você precisa ter discernimento”, diz.
Mudanças na capital mineira
Essas mudanças estão levando novidades para o Brasil inteiro. Segundo Guilherme Sanson, Presidente da ABIH-MG – Associação Brasileira da Indústria de Hotéis de São Paulo, quase 30% dos meios de hospedagem não estão mais em atividades na cidade. “Cerca de 28% das hospedagens encerraram ou suspenderam as atividades no estado. Já as hospedagens que estão passando por essa mudança representam 50% deste total em Belo Horizonte como em várias outras cidades. Muitos estão saindo do pool hoteleiro”, disse Sanson. Ele explica que a principal finalidade da transformação que a hotelaria passa visa a sobrevivência no Brasil. “Em Belo Horizonte e outras praças, que tiveram todo este incremento de ofertas de quartos, essa transformação trata-se de uma reorganização do mercado e de sobrevivência dos negócios”, concluiu.
Fonte: Revista Hotéis